Para quem não sabe, em dezembro estarei na cidade de Itaobim, em Minas Gerais. Era para eu ter escrito isso antes, já está quase no final da expedição(ficamos até quarta feira, hojeédomingo). Mas deixo aqui o endereço do
blog do projeto.
Espero que ao fim desse mêsele esteja cheio de coisas!
Até aqui a experiência tem sido peculiar. Vi coisas que nunca vi, e no começo estava impossível, extremamente cansativo. Desde ontem eu não sei se peguei o ritmo ou se ficou mais tranquilo, estou até conseguindo me divertir. Pode ser uma fase que dure até meia noite, e amanhã a correria ensandecida volte.
Mais experiências depois, quero colocar muitas fotos, pois elas resumirão muitos dos meus pensamentos.
Só posso adiantar que algumas particulariudades da cidade tem me encantado. E deixo aqui uma postagem minha no blog:
Visita domiciliar, bairro São Cristovão
A primeira foi Maria, 83. O ônibus parou e fomos encaminhados até um boteco - na versão mais real que a palavra pode expressar. Um homem com olhar perdido estava sentado olhando para fora e não se abalou quase nada com a chegada de nove uniformemente encamisados. Passamos pelo balcão e entramos à direita, logo no próximo cômodo estava a primeira paciente do dia: dona Maria, em seu leito de definho.
A visão daquela figura pequenina com os braços e pernas mais finos do mundo chocaram-me, mais do que a fisioterapeuta Lílian, acredito. Ela, o que chamamos de discutidora de casos (graduados) acompanhava o grupo, e as outras sete pessoas fora eu eram todas macacas velhas no atender pacientes nas suas áreas e pretensões. A cito, pois foi a que primeiro interagiu com Maria, demonstrando muita liberdade e doçura, tratando-a como se fosse uma rainha.
A velhinha dos cabelos brancos e pontas vermelhas rapidinho se soltou, e até ria das bobeiras ditas. Não só ela, o grupo inteiro respirou aliviado com o quebra-gelo, e cada um pôde interagir com ela da melhor forma possível. Algo que me chamou a atenção na hora foi o mutismo dos alunos frente aquela figura esquálida. Nós fazemos a bandeira inteira, realizamos triagem, atendimentos, coletamos sangue... Mas naquele momento falou a experiência de uma que há muito pouco deixara de ser aluna. Mais tarde me contaria ter paixão por atender idosos, então naquela hora estava fazendo algo que lhe dava prazer, o que explica tudo.
A sua cuidadora, Carmen, não era parente. 49 anos, gentil e simples, nos repetia que a velhinha não dava por que não dava trabalho, que comia bem igual todos da casa, as mesmas coisas. E que aquele quarto era por que ela queria estar ali. Após os exames, tanto do residente Filipe (clínica geral) e das fisios, ficou claro que a mocinha não estava tão ruim assim. Por mais que não conseguisse esticar as pernas bem e elas doessem, e seu sentar era tão corcunda que a deixava com o tronco desproporcionalmente pequeno; tinha solução. Lilian diagnosticou síndrome do imobilismo.
Três ou quatro anos antes, quando ela quebrou a bacia, começou a ficar cada vez mais na cama e, sem motivos físicos, parou de andar. Passava o dia inteiro lá, só saía para ir ao banheiro (carregada por Carmen ou seu marido, devia pesar no máximo 40 kg como uma criancinha enrugada). Acho que demais problemas decorrentes da condição de parada dela não cabem aqui. Uma senhora que ficou encamada de bobeira, triste e curioso. As meninas ensinaram alguns alongamentos, orientaram alimentação e limpeza da prótese (chapa, a popular dentadura) e seguimos.
Os próximos do dia foram uma senhora de idade muito avançada e um senhor encamado. Ana nasceu em 1913, e fez questão de mostrar para todos a certidão de nascimento – plastificada. O problema dela era bem simples, mas aproveitando a visita a fisio e a nutri também fizeram recomendações. Todos se divertiram com ela pois, quase cem anos, ficava brincando de jogar as pernas pro ar quando deitada na cama, quase alcançando a cabeça.
Enquanto isso, do lado de fora de sua minúscula casa – quase da zona rural, fogão a lenha, sem geladeira e esgoto da pia que dava para a hortinha no quintal, não achei o banheiro -, Priscilla da odonto conversava com duas meninhas vizinhas que tinham chegado da escola. Por costume, a aluna pediu para ver a boca delas, e mesmo com alguns dentes de leite, uma delas tinha perdido um molar – último dente da boca das crianças. “Banguela com oito anos”, repetia Priscilla, inconformada e didática. Ensinou-as a escovar os dentes com uma dentadura falsa enorme.
O último encamado foi deliberadamente o caso mais complicado. O homem era novo, caíra do cavalo anos atrás e quebrou o fêmur. Por falta de informação, não fez fisioterapia e cicatrizou errado. Suas pernas estavam deformadas, e não seria possível recuperar com fisioterapia, como com Maria. Quando o vi achei que tratava de um caso parecido de distrofia muscular por estar parado. Pela ausência de um procedimento muito simples esse homem não podia nem sentar mais. A única coisa que podia fazer naquele quarto era ouvir rádio (não que se tivesse uma TV sua vida seria melhor).
Mas o que mais incomodou todos era o fato de viver sozinho. Sua irmã cuidava dele, mas trabalhava a maior parte do dia. Ele passava os dias sozinhos naquela casa, não conhecia nem o quintal nem a cozinha – com geladeira! - nem a sala. Pela sua condição, foi fácil entender por que não fazia questão de se alimentar mesmo com comida disponível. Seu quarto cheirava mal, pois tinha de se virar sozinho em vários aspectos. Porém, seu abandono não era o pior concretizado naquele lugar: no quintal havia vários focos de dengue, pondo em risco ele e seus vizinhos.
Priscilla foi atendê-lo mesmo achando que as outras especialidades já tinham sido bem claras no diagnóstico. Mas se surpreendeu. Além de ter uma doença na gengiva por falta de limpeza, estava com guna. Me explicou que é quando um dente apodrece, e forma uma bola de pus na gengiva, para expulsar o corpo morto. A falta de cuidado era tanta que o dente chegou a ser expelido, ou seja, explodiu a bola de pus na boca dele. Ela disse que o deve ter sentido dores terríveis. Outro aspecto da guna é a baixíssima imunidade do paciente, mas ela não achou que se tratava de um aidético.
Dos pacientes da VD, apenas o último caso era cuidado por parente – a irmã. Os outros dois recebiam auxílio dos vizinhos. Isso dificilmente aconteceria em uma cidade maior, em bairros fora da periferia e favelas. Quem recebeu orientação para os cuidados com Ana – a de quase cem anos - foi sua vizinha, Geni, de meia idade.
Quanto à risonha dona Maria, Carmem que vai fazer os exercícios de fisioterapia junto. Mas foi o marido dela quem convidou a senhora para se juntar a eles, dez anos atrás – e antes dela quebrar a bacia. Carmem contou meio cantando brincando o quanto ela era travessa antes. Tinha aparecido no bairro trazendo pela mão um ceguinho, e pedia esmola com ele nas portas. Depois, recebeu convite de uma vizinha para ajudar a arrumar a casa, e abandonou o ceguinho pra ficar com outro. Esse último foi o que faleceu quando ela se juntou aos atuais cuidadores no boteco.
[Lia C S]