O pé direito enorme e o papel de parede aveludado faziam aquele lugar sussurrar tristemente tempos de glória e luxúria. Tempos que tinham ficado para trás assim como o bairro inteiro, que professava pateticamente uma cultura vanguardista que nunca existiu. A decadência sempre esteve nesse lugar, o veludo azul escuro nada mais era do que uma tentativa grãfina de quem sempre roeu ossos. Não, a idade e o bolor não poderia disfarçar seu reboco vagabundo.
E é nessa sala (mal) iluminada por uma única lâmpada sobressalente de um lustre de 10 delas, que conversam dois duplos. Têm formas humanas, mas são apenas projeções dos seus donos que dormem. A penumbra não é suficientemente densa para ocultar as rugas de um senhor(?) encurvado, que segura forçosamente um cachimbo quadrado entre os lábios. Elês estão conversando há algum tempo, mas é a partir desse trecho que pegamos algo:
-Porque realmente, devem ter acontecido bastantes mudanças com você tomando por base a nossa última conversa sobre relacionamentos e tal e coisa... - interroga a segunda figura. Essa tem desenho de mulher e fala dodecáfona, esganiçada.
-Você lembra o que eu pensava? - responde o velho, rápido demais para a idade que aparenta - Agora? Mas sim, aconteceram bastantes mudanças comigo, não posso negar
-Não acredito também no amor que dizem por aí, esse amor que as pessoas sentem
-Humm, é isso mesmo
-Mas com certeza é muito cedo pra falar essas coisas.
-Sim. Eu acredito que o amor é uma opção, uma escolha e continuo não acreditando no que antes critiquei. Se bem que - pausa - eu não acredito em nada, estou só tentando descobrir algo. Não sou mais tão enfático como antes ao negar coisa, estou mais.. ponderável - e dá uma baforada grudenta que se mistura com os outros vapores da sala, certamente provenientes da cozinha vizinha, daonde também vêm um cheiro agridoce de fazer os olhos chorarem.
-Entendi... Então não adianta eu perguntar o que vc espera de um relacionamento a dois, pq vc ainda não descobriu né?
-Descobri? Não, ainda não. Que pretensão, por Ds.
Mas porque eu preciso dele... ainda não. Eu sei que somos seres incompletos. e nossa única aspiração é atingir a completude. Mesmo que eu seja muito criticado pela visão dualista, claro que me critico, não consigo deixar de pensar que os humanos querem ser deuses, e apenas isso.
Eu sei que gosto dele.
-Certo. E isso basta
-Não, não basta.
Não basta gostar, é preciso um esforço gigante - gigante, repete - uma paciência do tamanho do mundo.
-Que complicado tudo aquilo que vc falou, Mestre.
-O fato é que, os humanos querem ser deuses.
Mas pra serem deuses, têm de ser completos.
Só que, ao afirmar isso, eu me baseio em uma dualidade, em uma concepção platônica de perfeição. E sempre me questiono, por que Platão?
Porque fui criado com concepções como "deus", "perfeito", "imperfeito" e assim por diante, sendo que essa é só mais uma visão de todas as que existem. - e dá uma pausa, como se finalmente a idade tivesse vindo com toda as suas dores. Quando voltar a falar, parecerá cansado. Até os duplos se cansam em suas brincadeiras noturnas de andar por aí - A questão é que, se por um acaso eu fosse de uma tribo indígena da américa do norte, eu poderia acreditar que eu sou parado no mundo, e as coisas passam através de mim, ao invés deu andar por aí. Ía acreditar que o mundo flui sob meus pés.
-Tá...só me explica o negócio dos humanos quererem ser deuses, que daí eu tento entender o raciocínio posterior - respondeu displiscente.
-Só porque eu nasci onde nasci é que eu penso assim, de maneira ocidental
os humanos querem poder, pequena.
Querem se sentir bem O TEMPO TODO
a filosofia busca isso
[a alegria
[o hedonismo
Você se sentir bem o tempo todo. Acho que isso vem muito de negar a solidão, e negando a solidão, você fica "cheio"
-Cheio de que?
-E é isso que buscamos em outra pessoa. Nos apoderar dela para compensar nossos defeitos e sermos mais "cheios". Buscamos as coisas boas dela para nos sentirmos bem todo o tempo
-Mestre, se me permite tal atrevimento, não acha que falar de toda a humanidade é uma tarefa grande demais? Por que não quero alguém para compensar meus defeitos, me apoderar das suas qualidades. Gosto de pensar que as coisas são mais sinestésicas do que filosóficas.
-Tudo bem expor sua opinião. Mas continue: sinestésicas? - e ri um riso cansado, já é totalmente velho.
-Sim, do que se sente... Algo como estou namorando por que gosto dele, gosto de estar com ele, escolhi estar com ele. Para mim essa linha da raciocínio é super redondinha, se fecha completamente.
-Cuidado com fechamentos, caro. Eu escolhi estar com ele - como pode ser redondo algo assim? É totalmente aberto! Uma flecha que percorre o universo, isso é. Vá agora, há outros mundo além deste.
É o fim do falação. Eles vão ficar aí um pouco mais. Até chegar a hora de se dirigirem ao ambiente vizinho, daonde vêm a fumaça agridoce. Aonde se juntarão à mesa com outros duplos, para um banquete onde serão servidas carnes de todos os tipos, para sua felicidade.
Há 14 anos
5 comentários:
ei essa ideia é minha
é nada seu metido
>O
oh my! oh my! oh my...
Bonito heim!
Eu quase me encontro aí, mas ainda tem muitas certezas..
Eu aho que só fico satisfeito quando estiver satisfeito sem nada, em todos os sentidos! ;)
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