quinta-feira, 31 de julho de 2008

Cores


"...De decreto em decreto tenta-se vencer o preconceito e o abandono de brasileiros que, ao preservar sua memória e lutar pelos seus direitos, é um tipo de cidadão em extinção e com grande risco de desaparição. Se essa tiver de ocorrer, que aconteça para o bem, daqui a alguns anos. O suficiente para que não haja mais índios, brancos, amarelos, negros, vermelhos; mas sim uma coisa só e degrade, distinto em cores e jeitos como o azul, o verde ou o violeta".

Trecho de um texto que fala de cotas para indígenas nos vestibulares

segunda-feira, 28 de julho de 2008

das coisas que passam pela cabeça em um sopro

Ela não era o tipo que sentia a ervilha debaixo do colchão, e por isso não se importava com as raízes da grama incomodando suas costas. Grama não é coisa suja, que nem chão, afinal, depois é só bater e pronto. Ou deixar a grama seca grudar na roupa, nenhum problema.
Mas já que não se importava com as raízes, não pensava nas amiúdes que o ato inspirava, pensava sim era no nada cotidiano tão pesado. No que ia fazer da vida agora que as coisas pareciam estranhamente calmas. Tinha dezenas de assuntos para resolver, outro tanto para se dedicar, ah! A vida moderna agindo na sua consciência sempre obrigava-a a arranjar coisas para se dedicar. Milhões de atividades e necessidades para a formação, para a melhora da formação, e, finalmente e porque não, para se esquecer de tudo isso. Depois de pagar tanto para se informar e ser uma pessoa bem preparada, ela gastava mais um tanto para se livrar do stress. Precisava disso, de pagar para se livrar do mundo inteiro que carregava.
Crônicas dos tempos dos últimos anos.
Ah! O teatro!
Com as raízes nas costas empurrando, pedindo ar e liberdade (monstra), ela pensava mais nele do que no resto problemático. Não que o piá fosse a solução para tudo, era para várias coisas, e tinha algo de alegria diária. Ela sempre encarara a dependência de outrem como um flagelo, algo para não se desejar para si, mas conforme envelheceu algo percebeu que era bobeira, que sempre fora dependente. E agora passara para outro nível de auto-conhecimento ao chegar a pensar que o tal fazia algo de alegre no dia cheio dela. Fazia algum tempo, desde que ele tinha se entregado como posse, que ela se sentia estando feliz, e podia dizer Hoje estou feliz, estou bem.
Estranho.
A menina do dia cheio como a noite é de partículas escuras, que pagava para se sentir bem mas que abominava alimentar a alma com qualquer outra matéria que não fosse espiritual, se sentia perdida. Há quanto tempo estaria deitada? Estava quase escuro, então ela deu ar às plantas sufocadas - pobres - e seguiu seu caminho, algum deles, que poderia ou não ser o mesmo de um monte de gente, ao menos em alguns trechos.

*

Não devia ter medo de continuar andando. Esse temor revela nada mais que mesquinharia, que apego às coisas trouxas, que não prestam. Gostaria de poder virar e falar alto com toda uma autoridade que ninguém nunca me deu que é para você largar todas as suas roupas e seguir em frente. Em frente não, que besteira, se digo que existe frente é porque existe trás, existe uma linha um percurso natural. Não sei como era da onde você veio, guria, mas aqui não tem trás nem começo. Aqui você não segue o caminho. Você sim mexe as pernas e a terra que caminha por debaixo dos seus pés, ela que escolhe onde você vai pausar durante a noite. Por que você não é superior a ela, vocês estão no mesmo plano, consegue entender isso? Que é estupidez dizer que você caminha sobre as pedras, flores e arbustos como bem entende? Nunca foi assim aqui, e não é hoje que as coisas vão mudar. Se você não entende continue seguindo, não perca tempo falando comigo. Mas lembre-se da minha única recomendação, deixe suas roupas, duras como estão no corpo aqui, exatamente aqui, e não leve nada mais do que a sua humanidade mais bruta na sua viagem.
Eu perguntei porque você está viajando?
Exatamente, não quero saber. Até mais, e perdoe qualquer grosseria, algum dia depois desse você vai desguardar esse rancor que está nascendo agora.


E se foi a velha conhecida que nunca foi muito íntima mas que de vez em quando fala algo profundo. A primeira pessoa que o ser gênero feminino que estava deitado encontrou depois de dar ar às gramíneas outrora sufocadas.


*

A terra então caminhava sob seus pés, e os lagos e os oceanos, e ela não conseguia achar a resposta para a pergunta simples da sua dependência. O que eu sou para ele aparecia escrito nos peixes, nos talos ondulantes subintes das algas, pichado no lombo de porcos selvagens corendo.
E nesse momento ela não encontrou nenhum animal que tinha forma humana.

*

Sua angústia de não saber as coisas caía em gotas como suor dos seus braços, que se transformavam em pedrinhas pequenas e inofensivas e aumentavam até levarem tudo que estavam à sua frente como fazem as avalanches. Machucava mais gente do que seria justo.

*

Em um dos oceanos encontrou uma jangada que levava um homem velho o suficiente para saber muitas coisas. Então o homem feito - desfazendo - contou que tinha um filho aprisionado numa árvore grande no meio do mundo, e que só ela poderia salvá-lo. Só tinha que ser levada pelo vento sudoeste até a próxima terra. Chegando lá se juntaria à uma caravana de mercadores de peles que atravessaria o deserto em segurança, mas teria de ficar de olho nas formações rochosas, afinal, teria de escalar o penhasco mais alto para se encontrar com um pássaro enorme. Esse pássaro, que tinha o nome de Alepo, a levaria até o teto de um castelo de mármore e pedras preciosas em uma terra distante. Sua missão estava quase no fim: a árvore-cela do menino aprisionado ficava no jardim desse castelo, e o velho fez questão de deixar claro que ela não precisava se preocupar com achar a árvore certa, por algum motivo ela saberia - como deve ser.

*

Dito isso o velho mergulhou de ponta no mar em um salto que valeria dez em qualquer competição amadora e desapareceu entre as ondulações azul-escuro quase breu. Ela, assustada com a aparição repentina e sábia duvidou se deveria ajudar o velho, e decidiu que sim por não ter nada melhor para fazer. E um pouco de curiosidade ajudou também, e se acontecesse tudo exatamente como tinha sido ordenado? Certamente espantoso. Assim, esperou bater o vento sudoeste e fez uma vela com seus cabelos e foi empurrada até bater em uma terra.
Quase careca agonizou na praia até ouvir os tambores da caravana de peles que mais parecia trio elétrico se aproximando. Chamou a atenção deles com seu canto e explicou sua história para o líder, que providenciou um camelo, roupas da melhor grife e toda sorte de comida da região. Passou então, a atravessar o deserto em grande estilo e conforto, sempre atenta às montanhas, montes, morros e tudo que fosse descoberto de areia.

*

Quando avistou a maior das montanhas, que por azar ou providência - nunca saberemos -, era a mais pontiaguda, recortada e árida. Beijou o chão frente ao líder mercador, agradeceu e desejou belas noites para todas as futuras gerações e se foi em busca de Alepo. Demorou meses para alcançar o topo, não porque fosse tão difícil o caminho, mas mais porque era distraída perdia muito tempo apreciando as diferentes vistas conforme se subia a montanha. Sorria com os jogos de caleidoscópio que as alturas jogavam com os olhos, primeiro só o bege arenoso com transeuntes raros desenhando seus pés na areia, depois tudo era um borrão de areia, gente, cobras, lagartos e toda espécie de animais do deserto. Mais para cima a visão de baixo era arroxeada, não talvez pela falta de ar que ela sentia, mas quem sabe pelos pigmentos que constituíam a atmosfera daquela parte, daquela altura. E ficava cada vez mais bonito conforme se subia.
Mas uma hora ela subiu tanto que chegou no ninho do belo pássaro gigante, pulou em cima dele e, porque já estava escrito, Alepo a conduziu para o tal castelo. Agradeceu Alepo, mas quando esse alçava vôo, ela jogou uma pedra que o fez desmaiar, o matou e o comeu. Nunca mais outro chegaria até ali via Alepo, logicamente.

*

Não pensou que demoraria tanto para encontrar a árvore. Eram todas parecidas naquele jardim do tamanho de um país, e já que ela saberia quando seria a certa, não se preocupava em dispensar todas que via. Não, não, não. Demorou anos até que tivesse certeza, e nem precisou pensar muito quando chegou em cima de uma delas, que era igual às outras, mas tinha um anjo pousado em cima. Um anjo mal-educado que não respondeu a nenhuma intervenção dela. Com suas grandes unhas de anos sem cortar, ela cavou a casca, toda a matéria morta do belo castanheiro, a matéria viva, até que abriu uma cavidade e todo um óleo se derramou. Óleo que cheirava à almíscar mas era como placenta, pois sobreviveu nele o rapaz, que tossiu, vomitou, e respirou ar pela primeira vez depois de muito tempo trancafiado.

*

Ele era belo de tal modo que ela se sentia bem só de olhar para ele. Não se importou de carregá-lo nas costas durante uma longa jornada, também. Não tinha coragem de abandoná-lo com suas pernas bobas e músculos débeis de quem não se mexe há anos.

*

Você me faz feliz.

Ao dizer isso, o rapaz que na verdade era um príncipe, levantou foi-se, e nunca mais se viram. Foi-se como uma folha que quando morre voa longe.

*

Ela se entristeceu e desejou nunca ter levantado. Além de não achar respostas tinha agora de lidar com a dor da separação. Iria continuar até acabar no mesmo lugar de antes, mas quando lembrou de que talvez nunca voltasse chorou, e suas lágrimas se transformaram em uma bacia hidrográfica, de maneira que uma vez passou raspando um navio pirata. Ela se assustou com o quase atropelamento gritando, e quando viram uma mulher na beira do rio a convidaram para subir, por sorte estava acontecendo uma grande festa, onde ela se divertiu por dias, céus como eles tinham histórias para contar!

*

Ficou enjoada rápido de toda aquela algazarra. Se lembrou dele, do que tinha para fazer, dos mercadores, de Alepo e por fim do príncipe. Acontece que bem nesse momento o navio chegava à terras conhecidas por ela. Sim, decerto era a paisagem inicial, mas mais alagada devido à grande umidade dos últimos tempos.
Diferentemente de outras histórias que ela tinha tido notícia alguma vez, ao voltar para o seu local de origem não se sentia amadurecida. Para ela essa história de retorno ao antes não significou nada.

*

Cansou de pensar no que tinha de ser feito, e em tudo que deixou de ser feito na humanidade. Dormiu e se tornou grama.

terça-feira, 15 de julho de 2008

sábado, 5 de julho de 2008

Lua da Caçadora


Em cena a mulher travestida de matadora. A Matadora, como a chamam. Ela entra elegantemente com toda a sua força estampada no olhar feroz e passos firmes. Olhos que vão buscar o sangue que será derramado em pouco tempo, para o bem.

A multidão a aplaude calorosamente: ela é a estrela da morte, e com elegância espera a sua sina, se perdendo nas curvas do bordado dourado interminável dos seus trajes masculinos.

Nunca foi tão mulher, nem tão viril, como o é nesse dia em que escolherá mais uma vez entre a vida e a morte, na dança que seus passos precisos fazem de escapar e avançar no show de carnificina.

E aplaudem a atitude vã e a beleza rubra da dançarina que mistura terror e sensualidade em um único ato.

Não se preocupam, são felizes, não importa o resultado quando a heroína traz diversão. Ela certamente o trará, a Matadora, como a chamam.