sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Senhora das Armas


Não era pra ter sido assim. Ao menos não naquela hora. Ano novo, discutia meu namorado e uma amiga engenheira (estudante), a Irma. Quando menores, influenciadas pelos mangás, brincávamos de simular eventos no futuro, e nos correspondíamos em meio a uma guerra que aconteceria em 2011. Uma longa guerra, e cada uma estaria em um local do mundo, realizando determinada atividade. De médica acabei em uma faculdade de jornalismo, e longe dos uniformes militares, passei a pensar modos de cultivar um mundo pacífico. Minha amiga também, a seu modo.

Mas nessa conversa imprevista, Irma comentou como quem nada quer seu desejo de trabalhar construindo armas. Essa declaração me impressionou, mesmo que eu já conhecesse seus pressupostos e influências, e me vi obrigada a usar toda minha força argumentativa de final de noite para convencê-la a não insistir nesse sonho. Imaginei que já estava tudo na minha manga, que daqui a poucos minutos a teria para meu lado. Afinal, tão senso comum, não, ser contra as armas? Elas não ajudam o mundo a ser um lugar melhor, mais habitável - foi assim que comecei. E continuei falando que havia muito a se fazer, importante e difícil, cujo objetivo não era destruir vidas.

É fácil entender os motivos despretensiosos de uma mulher que viu o pai crescer fazendo mísseis e ogivas, a beleza da mecânica, a eficiência, um projeto sem erros. E o principal, ela vive em paz, tentei convencê-la de que, se vivesse em uma situação de violência, talvez ela não quisesse alimentar isso. Recentemente em uma bela universidade do interior, onde ao invés de tiros de balas cortando o silêncio das suas noites, o que ela ouve é violão ao vivo na praça, algum amigo tocando.
Porém, me surpreendi com o rumo que tomou a falação, "quando digo que quero fabricar armas eu não penso em ataque, mas em proteção. Sou uma patriota além de tudo, não penso primeiro nos problemas de fora".

Não adiantava eu falar que as armas não eram usadas só para proteção, que elas eram exportadas para todos os locais onde as guerras intermináveis acontecem. Inclusive voltam para o país no comércio ilegal e vão para a mão da bandidagem. Tentei continuar no argumento de que moralmente não era razoável contribuir com isso, mas se ela não o fizesse outros iriam fazer, nunca vai acabar. Ela é do tipo que não acredita em uma melhora gradual do mundo, nem eu, infelizmente. Tento, às vezes. Diferentemente do meu namorado, que estava do meu outro lado, ajudando Irma nos argumentos. Não por que concordasse com ela, mas para testar meus limites e idéias, justo.

Ele fala uma coisa legal, que é uma certa obrigatoriedade em melhorar. Que a humanidade tem que caminhar para um quando onde todo trabalho manual e degradante é feito por robôs. Como se fosse uma espécie de jogo corrido pela tecnologia e justiça. É bonito, e gostaria de compartilhar de alguma parte desse otimismo, mas como disse antes, só às vezes.

Conforme a conversa foi ganhando comprimento, e ela jogou o argumento de que as armas sempre serão construídas, ao invés de insistir no meu ponto de vista, ou achar outro que estava guardado em alguma dobra do cérebro, desisti de defender meu ponto de vista e me juntei ao coro que questionava meus valores. Por que parecia o mais certo a se fazer, não por que eu vi de antemão que não convenceria ninguém ali - o desfecho mais razoável.

(em voz alta) Falo essas coisas com propriedade como se eu fizesse alguma coisa contra as guerras. Como se jornalismo ajudasse alguém. No fim todas as profissões não alimentam o status quo - jogou o namorado - todos só querem enriquecer e viver bem aqui. Momentâneamente não tive forças para continuar. Me lembrei dos meus próprios problemas existenciais de carreira e escolhas de vida e me calei.

Cheguei a me arrepender depois, ou me sentir pateticamente redimida quando assisti, dias depois, a ficção Diamante de Sangue. A personagem de Jennifer Connelly, jornalista investigando a verdadeira origem dos diamantes que chegavam em Londres, confessou que o que escrevia poderia não ajudar os refugiados, mesmo que emocionasse alguém nos Estados Unidos. É por isso que precisava de fatos. Para que não ficasse apenas na narrativa, mas que tal reportagem tivesse uma consequencia mais profunda, podendo incriminar alguém, ou fazer a preocupação ir além da comoção das lágrimas. Mas que se transformassem em ações maiores, políticas.

O que mais gostei no filme foi a refutação do TIA (This is Africa), extenuamente repetido pelos africanos do filme, a desculpa eterna para os problemas e violências causado por conterrâneos: "Assim como não é toda garota americana que quer um diamante quando fica noiva, não é todo africano que não se importa com seu lugar". Era algo assim. Que nem todos queriam embarcar no crime e sobreviver a QUALQUER custo.


[Tistou les pouces verts]