terça-feira, 30 de outubro de 2007

O rolo do rolex

[texto interessante que li hoje de manhã]

ZECA BALEIRO


Por que um cidadão vem a público mostrar sua revolta com a situação do país, alardeando senso de justiça social, só quando é roubado?


NO INÍCIO do mês, o apresentador Luciano Huck escreveu um texto sobre o roubo de seu Rolex. O artigo gerou uma avalanche de cartas ao jornal, entre as quais uma escrita por mim. Não me considero um polemista, pelo menos não no sentido espetaculoso da palavra. Temo, por ser público, parecer alguém em busca de autopromoção, algo que abomino. Por outro lado, não arredo pé de uma boa discussão, o que sempre me parece salutar. Por isso resolvi aceitar o convite a expor minha opinião, já distorcida desde então.
Reconheço que minha carta, curta, grossa e escrita num instante emocionado, num impulso, não é um primor de clareza e sabia que corria o risco de interpretações toscas. Mas há momentos em que me parece necessário botar a boca no trombone, nem que seja para não poluir o fígado com rancores inúteis. Como uma provocação.
Foi o que fiz. Foi o que fez Huck, revoltado ao ver lesado seu patrimônio, sentimento, aliás, legítimo. Eu também reclamaria caso roubassem algo comprado com o suor do rosto. Reclamaria na mesa de bar, em família, na roda de amigos. Nunca num jornal.
Esse argumento, apesar de prosaico, é pra mim o xis da questão. Por que um cidadão vem a público mostrar sua revolta com a situação do país, alardeando senso de justiça social, só quando é roubado?
Lançando mão de privilégio dado a personalidades, utiliza um espaço de debates políticos e adultos para reclamações pessoais (sim, não fez mais que isso), escorado em argumentos quase infantis, como "sou cidadão, pago meus impostos". Dias depois, Ferréz, um porta-voz da periferia, escreveu texto no mesmo espaço, "romanceando" o ocorrido.
Foi acusado de glamourizar o roubo e de fazer apologia do crime. Antes que me acusem de ressentido ou revanchista, friso que lamento a violência sofrida por Huck. Não tenho nada pessoalmente contra ele, de quem não sei muito. Considero-o um bom profissional, alguém dotado de certa sensibilidade para lidar com o grande público, o que por si só me parece admirável. À distância, sei de sua rápida ascensão na TV. É, portanto, o que os mitificadores gostam de chamar de "vencedor". Alguém que conquista seu espaço à custa de trabalho me parece digno de admiração.
E-mails de leitores que chegaram até mim (os mais brandos me chamavam de "marxista babaca" e "comunista de museu") revelam uma confusão terrível de conceitos (e preconceitos) e idéias mal formuladas (há raras exceções) e me fizeram reafirmar minha triste tese de botequim de que o pensamento do nosso tempo está embotado, e as pessoas, desarticuladas.
Vi dois pobres estereótipos serem fortemente reiterados. Os que espinafraram Huck eram "comunistas" , "petistas", "fascistas". Os que o apoiavam eram "burgueses", "elite", palavra que desafortunadamente usei em minha carta. Elite é palavra perigosa e, de tão levianamente usada, esquecemos seu real sentido. Recorro ao "Houaiss": "Elite - 1. o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social [este sentido não se aplica à grande maioria dos ricos brasileiros] ; 2. minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o
grupo social [este, sim]".
A surpreendente repercussão do fato revela que a disparidade social é um calo no pé de nossa sociedade, para o qual não parece haver remédio -desfilaram intolerância e ódio à flor da pele, a destacar o espantoso texto de Reinaldo Azevedo, colunista da revista "Veja", notório reduto da ultradireita caricata, mas nem por isso menos perigosa. Amparado em uma hipócrita "consciência democrática", propõe vetar o direito à expressão (represália a Ferréz), uma das maiores conquistas do nosso ralo processo democrático. Não cabendo em si, dispara esta pérola: "Sem ela [a propriedade privada], estaríamos de tacape na mão, puxando as moças pelos cabelos". Confesso que me peguei a imaginar esse sr. de tacape em mãos, lutando por seu lugar à sombra sem o escudo de uma revista fascistóide. Os idiotas devem ter direito à expressão, sim, sr. Reinaldo. Seu texto é prova disso.
Igual direito de expressão foi dado a Huck e Ferréz. Do imbróglio, sobram-me duas parcas conclusões. A exclusão social não justifica a delinqüência ou o pendor ao crime, mas ninguém poderá negar que alguém sem direito à escola, que cresce num cenário de miséria e abandono, está mais vulnerável aos apelos da vida bandida. Por seu turno, pessoas públicas não são blindadas (seus carros podem ser) e estão sujeitas a roubos, violências ou à desaprovação de leitores, especialmente se cometem textos fúteis sobre questões tão críticas como essa ora em debate.
Por fim, devo dizer que sempre pensei a existência como algo muito mais complexo do que um mero embate entre ricos e pobres, esquerda e direita, conservadores e progressistas, excluídos e privilegiados. O tosco debate em torno do desabafo nervoso de Huck pôs novas pulgas na minha orelha. Ao que parece, desde as priscas eras, o problema do mundo é mesmo um só -uma luta de classes cruel e sem fim.


JOSÉ DE RIBAMAR COELHO SANTOS, 41, o Zeca Baleiro, é cantor e
compositor maranhense. Tem sete discos lançados, entre eles, "Pet Shop
Mundo Cão".

10 comentários:

Vandson disse...

ahuAHAUAhuAhAUAU....muito bom o texto. Se bem que, do cara que escreveu "Bandeira" (eu dava um braço pra ter feito essa música) não dava pra esperar pouco. Quanto ao Huck, o problema não é o relógio né?! É se dar conta da própria vulnerabilidade. Isso para a elite é imperdoável.
bjos

Unknown disse...

Pena que o texto do Jeca Boleiro foi mais futil ainda.. falou que o outro foi simplista, falou que vê o mundo de modo de diferente, como qualquer vestibulando falaria, mas não diz o que acha então, não diz nada que acrescente e me gasta 10 minutos ainda! Baleiro, vai cantar vai
Resumo do texto:
O Huck reclamou do roubo
A Veja é de direita

isso eu ja sabia..

Escreve um texto dizendo o que ele não disse moça! ;)

Anônimo disse...

Sempre adorei o Zeca Baleiro, mas ele perdeu muitos pontos comigo quando mandou a cartinha pro jornal comentando o texto do Huck.

Ok, o sr. Angélica foi um bocado infantil ao publicar seu chilique? Sim. Mas e daí? Ele não pode se revoltar porque é rico e só quem se fode na vida é que pode pensar em qualquer tipo de mazela social?

A Veja propõe um estereótipo dos "militantes de esquerda" que acaba se encontrando no Zeca Baleiro*: Já se foi o tempo em que acreditavam em divisão de riquezas. Agora, a moda é dividir a pobreza e viver todo mundo na merda.

*Uau, achei alguma coisa em que a Veja tem razão! Eu sou um gênio!

Pedro Sibahi disse...

Ae Lia! eu já tinha falado que achei esse o melhor texto sobre o assunto?
Tipo, pra que não coseguiu entender (tinha que ser casper neh.. hehehe, aqui vai:
1- Não adianta nada ficar reclamando da criminalidade da forma que o Huck fez, todo "mamãe me roubaram", ainda mais, só quando isso acontece com ele. Isso é porquê ele é famoso, tem repercusão a sua cobrança de ação policial.. É melhor não comentar assuntos importantes se for pra falar bosta.
2- Se dizer que "A exclusão social não justifica a delinqüência ou o pendor ao crime, mas ninguém poderá negar que alguém [b]sem direito à escola, que cresce num cenário de miséria e abandono[/b], está mais vulnerável aos apelos da vida bandida." não diz nada, não aponta soluções, temos problemas de interpretação!
De resto, como o Vandso falou: vulnerabilidade. Acho lindo quando aquelas bolhas bonitinhas criadas com cuidado desde a nossa infância estouram! :D
Beijos a todos!

Anônimo disse...

Pedroka, O Luciano Huck já encabeçava o movimento "Cansei" (cansamos todos nós, eu sei...) antes de ser assaltado. Você pode questionar a seriedade do "movimento" e a (des)orientação política, mas jamais alguém pode desqualificar como movimento social. Ora, elite é povo também e tirar seu direito de voz vai nos fazer cair num paradoxo de "se formos tolerantes com os intolerantes, seremos cúmplices de sua intolerância. Se formos intolerantes com eles, então..." A questão é um pouco mais rasa do que isso:

Sim, quem tem menos condições de levar uma vida digna está absolutamente mais inclinado a ceder ao crime (vamos excluir os bem-nascidos de Brasília por motivos didáticos), mas quem sou eu ou quem é você pra falar "haha, se fodeu" de um cara qualquer que foi assaltado? Tem uma inversão radical de valores embutida nisso aí. E a sua afirmação [2] só constata o problema, não aponta mesmo nenhuma solução. E isso não grita incapacidade, muito pelo contrário: quer dizer que, mesmo sem "terreno" pra visualizar algo diferente, seu senso crítico não foi amputado pelo besteirol enlatado que engolimos todo dia.

Mas se você tiver alguma solução viável pro mundo, pede meu msn pra elefantinha no asa-delta e me conta. Eu quero mesmo estar errado, pôxa.

Pedro Sibahi disse...

Fala Tomiate!
Na verdade meu comentário não foi só pra vc, mas pro Rael tb, que achei ser outro casperiano, por isso não distingui os dois.
De qualquer forma, gostei de sua resposta.
É verdade, não podemos deixar de dar voz a todos, independentemente de concordadr ou não.
Mas eu ainda não tenho uma opinião formada sobre o direito à propriedade. Mas se ele não foi fisicamente agredido, se o relógio não foi usado pra comprar drogas (o que infelizmente é muito provável), mas para comprar comida, fico até feliz que tenha passado para outras mãos. Sim, isso é quase uma apologia ao crime, ou quem sabe à desapropriação de bens privados...
Já na afirmação n° 2 eu falei que apontava um caminho.

Pedro Sibahi disse...

O da educação, apoio à criança orfã, apoio à famílias carentes. Para mim, não deve ser de forma paleativa, mas pela congregando medidas à curto, médio e longo prazo. Muitas veze deve-se acabar com privilégios, o que desagrada bastante gente. É tudo meio difícil, ou não..
Fico por aí.. vamos ter umas discussões mais!

Anônimo disse...

Assim você tá caindo no estereótipo da Veja: O certo é que cada um tenha direito a seu próprio rolex, e não que quem tenha um tenha que se foder pro outro comprar feijão. Banqueiro não tem que se dar mal - banqueiro tem que se dar tão bem quanto o restante do povo. Alguns países da União Européia pensam mais ou menos assim e, mesmo sem nenhuma revolução, eles caminham a passos mais largos do que Cuba (ou do que a extinta URSS) em direção a uma sociedade mais justa (e ainda falta pra cacete...)

Agora sim você apontou um caminho, mas infelizmente tem MUITA engrenagenzinha pra rodar nesse país antes de alguém pensar em como fazer isso sem quebrar a América Latina inteira. Cruel? Demais.

Um assalto é um assalto, de qualquer maneira. Sem agressão, sem injetar grana no tráfico - ainda assim é um assalto. Não concordar com a lei que criminaliza esse ato não justifica apoiá-lo. Mesmo porque aí a discussão não tem fim: o governo tem autoridade suficiente pra cometer crimes com nomes diferentes. Pena de morte "não" é homicídio, "nem" prisão é sequestro. E não vou nem falar que cobrança de imposto "não" é 171, porque não vai colar.

Anônimo disse...

Acho que a gente precisa mesmo sentar numa mesa de boteco com suprimento ilimitado de cerveja. O nível da discussão ia cair bastante em umas poucas horas, mas ela seria bem mais saborosa...

Pedro Sibahi disse...

haha! pode cre!
Ainda mais pq hoje eu to com preguiça de te responder descentemente!
Amanhã, qnd eu tiver dormido mais de 5 hrs eu respondo!