terça-feira, 24 de julho de 2007

Artigo para site

A saga da ética no fotojornalismo
Por Evandro Pimentel e Lia Segre

“O que fazer? Preciso fazer alguma coisa. Pego a câmera e me reprimo. Fazer uma foto seria o ato mais insensível que alguém poderia ter. Mas por que diabos ando sempre com uma câmera? Até quando vou à esquina comprar cigarro, levo uma comigo. Justamente porque alguma coisa sempre pode acontecer. E eu precisava fazer alguma coisa, pelo menos para acreditar que tudo não tinha sido um pesadelo”. Este trecho faz parte da entrevista que o fotógrafo e autor de As Cidades do Brasil Tuca Vieira concedeu à revista piauí em sua edição de abril desse ano, quando através de uma surpreendente narrativa pessoal descreveu sua atitude após presenciar um suicida se jogando do viaduto da Avenida Dr. Arnaldo, na capital paulista. Há fotos que são notícias inteiras por si só, mas todas elas, sejam elas ilustrativas ou informativas, passam pelo crivo da ética, que é nada mais do que o estudo, a consciência dos limites válidos, estipulada por um público ou comunidade. No caso de Tuca, a absolvição veio da boca de um bombeiro: “Fica calmo, você não poderia ter feito nada”.
Fotojornalismo é o ramo do jornalismo baseado em imagens. Ele surgiu como uma maneira de complementar as informações que antes nos eram dadas somente através de descrições. Nasceu com todo aquele mito da veracidade inquestionável: uma foto serviria para tirar possíveis dúvidas, nos isentando da responsabilidade de ter de interpretar a notícia. Os casos de manipulação ocorridos antes mesmo da popularização da fotografia jornalística já serviriam para refutar o mito. Como exemplo, o caso das fadas supostamente fotografadas, quando em 1917 duas adolescentes conseguiram enganar Sir Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes. Até mesmo peritos da época declararam que os negativos não haviam sido alterados. Hoje, qualquer leigo percebe tratar-se de uma grosseira falsificação. Em 1902, foi fundado o movimento foto-secessão, por Alfred Stieglitz e Paul Strand, estabelecendo o direito da fotografia ser considerada uma das belas-artes Seja em casos extremos, como o da montagem das adolescentes inglesas, seja em casos mais discretos, como a escolha de um ângulo, percebeu-se que não só as fotos precisavam de interpretação, como o fotojornalismo envolvia toda uma ética a ser pensada. Mas, apesar disso, essa idéia ainda não está muito bem incorporada ao inconsciente coletivo e o mito da “verdade absoluta” sobrevive. Educar as pessoas para encarar a fotografia como uma pintura, ou seja, como uma linguagem carente de interpretação, torna-se então fundamental.
Segundo disse o estudioso e professor de fotojornalismo Boris Kossoy, em entrevista à revista História Viva, “A manipulação é inerente à construção da imagem fotográfica. A foto é sempre manipulada, posto que se trata de uma representação segundo um filtro cultural. São as interpretações culturais, estéticas/ideológicas e de outras naturezas que se acham codificadas nas imagens”. Fica assim explicitada a já citada importância da educação fotográfica: “A decifração das imagens vai além das aparências. Sua realidade interior deve ser desvendada segundo metodologias adequadas de análise e interpretação. Caso contrário, permaneceremos na superfície das imagens, iconografias ilustrativas sem densidade histórica”, completa.
Compartilhada por muitos fotógrafos, essa opinião não muda quando se fala em câmeras digitais: “Achava boba a discussão de que câmera digital permite uma manipulação melhor, mais apurada, porque a fotografia sempre existiu como instrumento político”, opina o fotojornalista João Bittar, responsável pela digitalização do arquivo da Folha de S.Paulo. “Corremos sempre o risco de sermos manipulados. No Rio, quando surgiu a discussão das digitais, reuniu-se uma assembléia que decidiu que quem fotografava de digital não era mais jornalista, sendo que preto e branco, típico do fotojornalismo, o [Sebastião] Salgado faz, e você não pode dizer que se trata da realidade. Aliás, o trabalho do Salgado é bom por causa disso: ele dá a opinião dele”, continua o fotógrafo, defendendo a parcialidade responsável dos profissionais de comunicação.
A National Press Photographers Association tem um código de ética para fotojornalistas que não condena a edição de uma imagem, “contando que a integridade da foto seja mantida”. Mas o que é integridade de conteúdo e contexto? Se houver uma superexposição, o fotógrafo pode - eticamente – editar a foto para restituir a ‘integridade’ que julgou originalmente ter captado? As circunstâncias que dizem respeito à atividade discutida são sem dúvida únicas, seja pela sua contemporâneidade, seja pela sua delicadeza e importância, tanto comercial quanto cultural.
É impossível falar de ética sem discutir limites: quanto vale uma boa foto? “Não é porque você é jornalista que pode ser diferente de outro cidadão qualquer. O ofício inclui o fato de você ser um cidadão. Você deve pautar suas atitudes nesses parâmetros: da ética, da solidariedade humana, do amor ao próximo. Esses princípios são pra valer e são pra todo mundo, inclusive pra nós”, acrescenta Bittar, na entrevista que nos concedeu.
A discussão da ética no fotojornalismo ganhou maior força em 1993, quando o fotógrafo sul-africano Kevin Carter fotografou um abutre observando e aguardando a morte de uma criança sudanesa subnutrida que definhava na relva, e mais recentemente este ano, quando o fotógrafo Tiago Brandão, a serviço do jornal Comércio da Franca, fotografou uma mãe salvando seu filho de um afogamento. Nos dois casos, a acusação foi a de não interferência do profissional no acontecimento. Ambos os fotógrafos são criticados até hoje, mesmo com o suicídio de Carter, apenas três meses após ter recebido o prêmio Pulitzer por sua mais famosa e polêmica foto. A atitude de Carter de fazer a foto, espantar o abutre e observar a criança por horas enquanto fumava e chorava é condenada por inúmeros blogs da internet. No caso brasileiro, algumas dessas páginas chegaram a colocar a foto do filho de Brandão e questionar se o pai retrataria o próprio filho se afogando ao invés de pular para salvá-lo.
Para João Bittar, cada caso é um caso. “Julgar as pessoas por elas terem tomado uma atitude depois que tudo já aconteceu é fácil.” O fotógrafo diz ainda que, no caso de Brandão, há dois aspectos importantes de serem analisados: “Um é que tudo teve final feliz, o que ajuda muito a pensar, o outro é que era um acidente doméstico, de alcance limitado. Se ele não tivesse feito as fotos e tivesse mergulhado com a mulher [Brandão afirma não saber nadar], a gente não saberia o que teria acontecido”. As fotografias, querendo ou não, conferiram veracidade ao caso, só que acabaram ganhando uma repercussão muito maior que a esperada.
A foto seria um produto mais rápido e instintivo do que ideológico, atitude-fruto da nossa sociedade imediatista e de vigilância. Há, por exemplo, quem ache válido mostrar o rosto de uma mãe chorando a morte de um filho, mesmo que a vida dela e de sua família não melhore propriamente, como forma de alerta. “É uma violência, realmente. Você me dá uma câmera objetiva, tiro a foto de uma mãe chorando, e no dia seguinte ela está em todos os jornais, todas as páginas de internet. Mas vai que isso incomoda a população, mobiliza o governo federal... Eu acho que aí, a foto cumpriu o papel dela, o papel social de denunciar”, diz Bittar, entrando em conflito com a visão mais cética do documentarista João Moreira Salles, que acredita que o respeito aos retratados vem em primeiro lugar: “Que direito você tem de dar um close no rosto de uma mãe que chora, de registrar aquele momento que lhe é tão íntimo?”
Há infinitas posições que se pode tomar frente à ética, mas essa talvez seja uma conversa sem fim, pois a ética está atrelada ao homem e ao seu conjunto, a uma sociedade que está em constante mutação. Mas parece difícil que a conclusão de Bittar tenha algo de inválido, mesmo com essa característica: “Eu acho que para ser um bom jornalista ou fotojornalista, você precisa ser uma boa pessoa. A ética está no pacote todo”.

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