Havia uma viúva com um filho chamado Joanorzim. Quando tinha treze anos ele teve vontade de sair pelo mundo e fazer fortuna: a mãe disse que só quando ele conseguisse derrubar com um pontapé um pinheiro que ficava no quintal deles.
Dito e feito, todos os dias depois de acordar, Joanorzim tentava um pontapé, e como o menino era muito valente o feito não tardou a acontecer: um dia o menino derrubou o tal pinheiro e pediu a benção da mãe.
Lá se foi Joanorzim pelas estradas da vida, até que chegou em um reino cujo rei possuía um cavalo que ninguém conseguia montar. Observando as trapalhadas tentativas dos empregados reais, o esperto garoto entendeu que o bicho era assim porque tinha medo da própria sombra. Não demorou até o dia em que, sorrateiramente nosso herói chegou ao estábulo e, como-quem-nada-quer, pulou no lombo do mal-compreendido – que se chamava Rondó -, logo conduzindo-o para fora do recinto, mas com a cabeça contra o sol. Dessa maneira, Rondó não via sua sombra, e ambos cavalgaram felizes para surpresa do rei e dos empregados. O mancebo ganhou fama e o carinho real, mas não tardou a pisar na bola – como não poderia deixar de ser -, contando vantagem conforme o ego subia-lhe à cabeça. No caso, o alvo da língua grande era a filha aprisionada do rei: Joanorzim dizia por que dizia que iria libertá-la. Acontece que o boato chegou aos ouvidos do pai da donzela, que ameaçou de morte nosso herói, se ele se recusasse a salvar a querida filha.
Lá se foi Joanorzim para as aventuras mais memoráveis de sua jornada. No meio do caminho se deparou com uma cena no mínimo bizarra, que consistia em quatro animais (um leão, um cachorro, uma águia e uma formiga) velando o cadáver de um burro. Ao se aproximar, veio o leão tentar um diálogo:
-Joanorzim (sim, ele sabia o nome do nosso herói), você que possui uma espada, seja justo e divida esse corpo entre mim e meus companheiros.
Dito e feito: o mancebo deu a cabeça para a formiga (“assim você poderá usá-la como casa, e encontrará comida para toda sua família”), as patas para o cachorro (“poderá roê-las até se cansar”), as tripas para a águia (“essa parte é facilmente transportável até o cume das montanhas”), e o resto do lombo ficou com o leão, que comia mais que os outros.
Vendo a sabedoria do jovem, cada animal recompensou-o de alguma forma:
-Tome uma de minhas garras, começou o leão, quando usá-la se tornará o leão mais feroz do mundo.
-Fique com um de meus bigodes para que possa ser o cão mais veloz que existe.
-Já da minha parte dou-lhe uma pena: dessa maneira, ao usá-la será a maior e mais forte águia a voar pelos céus;
-Fique com uma de minhas patinhas, Joanorzim, elas lhe possibilitarão transformar-se na mais pequenina formiga, impossível de ser vista até mesmo com o auxílio de uma lente de aumento.
Feliz e premiado com os novos utensílios, o jovem seguia confiante para seu objetivo-sem-nome. Atravessou bosques, lagos, pontes, mais bosques até avistar um castelo. Era o castelo do mago Corpo-Sem-Alma. Joanorzim se transformou em águia e voou até o peitoril de uma janela que estava fechada. Transformou-se em formiga e penetrou no aposento através de uma fresta. Era um quarto bonito, e no (sempre) centro do quarto dormia a bela princesa em um baldaquim. Sempre formiga, passeou nas bochechas dela, até que a moça despertou, e se viu ao lado de um belo rapaz ex-formigo:
-Não tenha medo, bela, vim salvá-la!
Dito isso entra no quarto o mago Corpo-Sem-Alma para se afogar nas graças da moça. Fazendo cafuné no velho decrépito, que estava com a cabeça sobre o colo macio dela, a moça lamenta a sorte do guardião Oh temo pela sua sorte, se descobrem seu segredo; Ah minha princesa, olhe para você ver: só conseguem me matar se adentrarem a bosque do quintal, matarem o leão negro que lá habita. E não só isso, bela, teriam de vencer ainda o veloz cão que existe dentro do leão, e posteriormente, a águia que existe dentro do cão. E (só de sacanagem) teriam de quebrar na minha testa o ovo que sairia da águia. É impossível! Somente desta maneira minha alma retornaria a meu corpo, matando-me. Ficou mais tranqüila agora?
Joanorzim, a ouvir daquelas palavras não perdeu tempo, se dirigindo ao bosque, rapidamente encontrou o leão negro. Por sua vez, utilizou a garra para transformar-se no mais forte leão do mundo: rasgou o felino do mago. Como em profecia, da barriga aberta saltou um cão negro, mas nosso herói já estava na própria forma de cão, de forma que digladiaram-se até sucumbir aquele que nascera da barriga aberta. Era a vez da águia negra, que não teve chances contra o filho dos deuses, o escrito nas estrelas, o sortudo Joanorzim-águia, que pegou o ovo que saiu do cadáver e deu-o à donzela prisioneira.
É agora que a vingança ressentida acontece, a princesa, cansada daqueles anos de odiosos ais-bela-minha-querida, adentra o quarto de Corpo-(quase não mais)Sem-Alma com uma tigela de sopa.
-Eu sei que está se sentindo mal, ó grande mago, trouxe essa sopa para que se sinta mais forte. Tome e Ah! Espere, deixe cá eu colocar esse ovo dentro pra ficar mais substancioso e
É. A donzela amargurada quebra o ovo na testa do velho. O final já se sabe, a alma volta ao esqueleto, a idade pesa e o cadáver se cria. Joarnozim volta e como bobeira é pouco, se casa com a bela ex-prisioneira-de-mago.
Fico imaginando quantos sentem a mesma coisa que eu diante de certas histórias (tão antigas-sempre novas) naquele formato guerreiro valente e virtuoso que cresce ao longo da narrativa passando por pequenas provas, até que se encontra na missão de sua vida. Ás vezes apanha um pouco, às vezes não (como Joanozim), mas sempre é bem sucedido e recompensado: seja na forma de mulheres ou bom casamento com a filha de um herdeiro, seja na forma de riqueza espiritual como Galaaz e a morte que é a salvação. Ou até mesmo Buda que atinge o Nirvana, Cristo, Naruto e outros personagens superfaturados que de tantas missões, confundem o esquema.
Isso sem tocar no ponto arqui-inimigo. Quando a história é boa, esse é abstrato, podendo ser um alter-ego, uma fraqueza, uma mágoa ou a loucura - como de praxe nos contos orientais. O modelo mais batido é o daquele vilão que é mau sem nenhuma razão aparente ou humanamente inteligível. É mau porque tem parte com o demo, ou porque é louco e no final acaba transpassado por uma espada ou morto pelo próprio metabolismo rebelde com tanta malvadeza.
O que nessas historias tanto nos fascina a ponto de precisarmos de histórias “idiotas” que nada dizem além de reforçar velhos preconceitos e morais, de achar divertido ler os feitos de Tristão que mais parece um Jet Li roceiro usando tripas da mãe para laçar o filho boi?
Essas perguntas me vieram à mente depois de ler o conto Corpo-Sem-Alma, incluso em um livro de fábulas com o qual presenteei alguém querido. Só tinha lido o posfácio antes de comprar, achando divertida a idéia de alguém mundano ler coisas que fizeram tanto sentido para crianças de outra era, de outro condado (ahahaha). Talvez seja essa também, a minha resposta. A verdade é que abri o livro, li esse conto e primeiramente, não gostei. Não gostei de ter me sentido vazia ou “tapeada”. Mas isso é tudo uma grande bobagem, visto que tal história intrigou-me a ponto deu escrever mais de 3000 caracteres.
Com certeza lembrei-me das terríveis e necessárias palavras de Guillermo Arriaga em uma das mais fantásticas entrevistas que já vi no Roda Viva: (algo como) “quero que o leitor leia meus livros e depois se pergunte porquê o fez. É esse sentimento que quero induzir...”.
Eu sorri de raiva quando você disse isso, querido Guillermo. Não é aconselhável brincar de razões com quem precisa delas para viver, para presentear, para ler um livro, para ler um conto, uma fábula e por fim, para quem se diverte com as peripécias de Tristão, odeia o Jet Li mas simpatiza com Jackie Chan.
Abraços para o amigo que, assim como eu, se sentiu tapeado ao ler “As Aventuras de Momotaro”, jovem prodígio nascido de um pêssego gigante (Momotaro significa, aliás, filho do pêssego) que sai de casa cedo para salvar o mundo, é reconhecido como valente antes mesmo de sustentar a espada pela primeira vez, mata um par de demônios, salva donzelas e..só. É herói, lembrado, reconhecido. Pelo menos entre os meninos japoneses daquela região antes de Cristo. (Feliz aniversário, caro)
[aos mais revoltados: eu precisava contar Corpo-Sem-Alma inteiro para efeito de empatia e total inserção. Mas não pensem que não dei uma resumida onde foi possível.]
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E para falar um pouco de hoje: revoltante os últimos dez segundos do jogo de basquete, quando o camarada bate bola durante todo aquele tempo, para “enrolar”. Já estava liquidado, mas não deixa de ser desrespeitoso. Dói ver, de fora, alguém levar uma surra. Quando se está dentro, eu sei, é gostoso demais vencer de muito, nocautear.
Mas além da bobeira humanística em relação aos jogadores porto-riquenhos, foi sofrível ver o Galvão engrandecendo o Pan, loureando os atletas; enquanto eu vejo no dia-a-dia brasileiros tão desiludidos com o curso do país, com as tragédias, com a economia, com a política. Parece que é até de propósito ver um desempenho tão bom em tempos de crises, é quase irônico. E me sinto tão conspiratória pensando em acordos, em circo, em picadeiros.
Parabéns aos batalhadores,
Mas considero encerrado o Pan (pelo menos nesse blog, até segundas ordens).